sexta-feira, 30 de março de 2012

Por que ler poesia negra?

Por meio de palavras se constroem e desconstroem mundos. Deste modo, muitas das religiões usam as narrativas, sejam orais ou escritas, para passar suas ideologias, crenças, valores. A literatura, que traz entre seus elementos–chave, a linguagem, pode também ser pensada para “além dos limites do bem e do mal”. E é a partir deste olhar que esta escrita se justifica, a fim de destacar vozes e textos que se afirmam como negros/as.
A poesia negra no Brasil tem como um dos seus expoentes, Solano Trindade, autor de diversas poesias dentre as quais Canto dos Palmares, Tem gente com fome, Sou negro. Nascido em 1908, na cidade de Recife, poeta negro, popular, ativista político e homem de teatro.
Nos anos 40, funda um importante centro de arte popular em Embu, São Paulo, e, posteriormente, o Teatro Popular Brasileiro e, junto a Abdias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro.
Falece em 1974, em São Paulo, mas sua memória continua viva em seus ancestrais, textos, atitudes e sucessores, como Zinho Trindade, seu bisneto, poeta, ator e MC Free Style, como comenta num blog (http://zinhotrindade.blogspot.com) de sua autoria.
Mediante este breve histórico percebe-se que, além do manejo com as letras, a vivência de Solano, lutando contra a exploração sócio-econômica e racial traz sentido a ferrenha crítica contida em seus versos.Canto dos Palmares é uma epopeia que narra poeticamente a história de uma comunidade em meio a resistência, negociações e leituras de mundo. Através da representação do Quilombo dos Palmares, são tecidos ritmos, imagens que compõe marcas de herança e ancestralidade negra, homenageando homens e mulheres, negros e negras que heroicamente lutaram/ lutam contra a exploração, desde o período de Zumbi. Solano diz "Eu canto aos Palmares/ sem inveja de Virgílio de Homero e de Camões..." não comparando-se aos grandes clássicos da literatura autores de Ilíada, Odisséia e Os Lusíadas , respectivamente, mas diferentemente destes, que cantam uma nação que deseja " expandir seus impérios", Solano faz sua homenagem, destacando a raça negra, objetivando ampliar o sentimento-ação de liberdade sociocultural. " porque o meu canto/ é o grito de uma raça/ em plena luta pela liberdade! (...).
O som dos tambores, atabaques, tan-tãs convoca seus ancestrais para a luta contra a hegemonia europeia, a favor de uma negritude que contemple o diálogo e afirmação entre diversas e povos. O eu-lírico combativamente se mostra, cruzando as ausências e prisões que o poder colonial busca fazer com a mente e corpo do colonizado.“O poeta quilombola desmonta o conceito clássico da epopeia, enquanto imitação de homens da elite, reis, rainhas, heróis a serviço da classe dominante”. Também o destaque é dado a um escravizado fugitivo, normalmente tido como um criminoso pelo regime escravista, e, numa revisão de sentido, passa a ser percebido como um homem honrado. A nobreza do “negro fugido” está na conclamação da liberdade, junto aos demais irmãos/ãs. Assim, a ação não nobre passa a ser a da invasão “por parte dos senhores de engenhos, governos e demais exploradores” desta sociedade, desde o escravismo até o capitalismo.
Em meio a esta reflexão percebe-se a importância da poesia negra, dentre outros, pelo viés afirmativo percebido no deslocamento da voz negra de objeto a sujeito, identidades e culturas de matriz africana, agindo de modo combativo ao discurso hegemônico e, tendo como um dos recursos de linguagem, em meio a cortes e mesclas da oralidade com a escrita, a oralitura. Desta forma percebe-se que enveredar pela poesia negra implica em adentrar num universo de palavras que falam de vida, de identidade, dores, solidariedade, enfim, do ser humano negro, seja de cor de pele, cultura, sentimento, e dos aspectos que envolvem seu estar no mundo.
Sugestões de leitura:

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Apesar das acontecências do banzo – Conceição Evaristo

Apesar das acontecências do banzo
há de nos restar a crença
na precisão de viver
e a sapiente leitura
das entre-falhas da linha-vida

Apesar de...
uma fé há de nos afiançar
de que, mesmo estando nós
entre rochas, não haverá pedra
a nos entupir o caminho.

Das acontecências do banzo
a pesar sobre nós,
há de nos aprumar a coragem.
Murros em ponta de faca (valem)
afiam os nossos desejos
neutralizando o corte da lâmina

Das acontecências do banzo
brotará em nós o abraço à vida
e seguiremos nossas rotas
de sal e mel
por entre salmos, Axé e aleluias.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A presença e voz de Conceição Evaristo na Uneb, Campus II, Alagoinhas

Nos dias dezoito e dezenove de agosto do ano de dois mil e onze a cidade de Alagoinhas foi agraciada com a presença da escritora e intelectual negra Conceição Evaristo. A razão da vinda de Conceição se deu por vontade e força política de alinhar discussões de militância e culturas negras aproveitando a oportunidade da minha defesa de mestrado intitulada, “Transtextualidade em poesias negras diaspóricas: usos e sentidos na educação multicultural”, tendo como orientador prof. Murilo da Costa.

A palestra de Conceição versou acerca das questões raciais na sociedade brasileira, principalmente tomando como base exemplos na literatura e história. Todo o momento de sua fala marca seu lugar de mulher escritora e negra. Ela repensa a história ao questionar a hegemonia discursiva e social atribuída a movimentos como os inconfidentes e abolicionistas brancos, já que movimentos resistentes como os quilombolas, com exceção dos Palmares, ainda são pouco conhecidos por grande parte das pessoas.




Alinhada com a fala, afirma para ela ser a escrita uma prática de insubordinação que possibilita a fuga para o sonho e a inserção para modificação. Conceição também afirma que o silenciamento da mulher negra na literatura é um “não dito que diz”, já que o “silêncio tece vozes na história”, assim como a supervalorização de determinados fatos, em detrimento do apagamento de outros. Também ela nos provoca questionando o que a "ausência da presença" da mulher negra na história e literatura traz como consequência senão a negação da representatividade histórica e literária da matriz africana na sociedade?

Assim, frisa que a poesia negra é combativa e prisma pela permanente reflexão da história oficial brasileira que minimiza e/ou invisibiliza as condições de vida e produção de milhares de cidadãos negros e afro-brasileiros, cabendo, portanto as vozes negras atrelada a demais vozes resistentes denuncia “o que os livros escondem,/ (e) as palavras ditas libertam. E (assim) não há quem ponha/ um ponto final na história", consoante versos de Conceição contidos na obra, “Poemas da recordação e outros movimentos”.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Lembrando o dia da mulher

Ressurgir das cinzas - Esmeralda Ribeiro

Sou forte, sou guerreira,
tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
mesmo que haja versos assimétricos,
mesmo que rabisquem, às vezes,
a poesia do meu ser,
mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
‘nunca me verás caído ao chão’
(...)
Sou guerreira como Luiza Mahin,
Sou inteligente como Lélia Gonzáles,
Sou entusiasta como Carolina Maria de Jesus,
Sou contemporânea como Firmina dos Reis
Sou herança de tantas outras ancestrais.
E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá,
mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar,
mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da injustiça
mesmo assim tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão.”

(Ribeiro, Esmeralda 2004: 63)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Samba-enredo para Solano Trindade

"Quilombo vem,
com a singeleza de um maracatu,
cheiroso como um lote de cajus,
delicioso feito um mungunzá.
Vem exaltar,
render tributo ao quilombola pioneiro,
gênio do pensamento afro-brasileiro,
filho dileto de Oxalá,
que fez soar, no tambor dos oprimidos,
esses valores esquecidos:
negritude e liberdade!
Poeta negro,
pintor das negras aquarelas,
cantor de páginas tão belas:
a bênção, Solano Trindade!
(No Recife!)
Recife, das velhas guerras de libertação!
No ano dos 20 anos da Abolição
nascia este gigante das idéias
que o Rio e a Paulicéia
consagrariam.
Neto de negra que lutou
na Revolta dos Malês,
igual a couro de tambor
quanto mais "quente" mais tocou,
quanto mais velho mais zoada fez.
Por isso, agora,
que o poeta está dormindo,
sonhando com um dia lindo
que certamente vai raiar (raiar)
Quilombo vem,
com a singeleza de um maracatu,
cheiroso como um lote de cajus,
o velho Solano homenagear”.



LOPES, Nei. Samba-enredo em homenagem a Solano Trindade. Disponível em: www.neilopes.blogger.com.br/ 2008_07_01_archive.html. Acessado em: 05 fev 2011.

domingo, 1 de agosto de 2010

Solano Trindade

CANTO DOS PALMARES

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero e de Camões
porque o meu canto é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

Há batidos fortes
de bombos e atabaques em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos...

Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada contra todas as tiranias!

Fecham minha boca
mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos do maldito senhor!
Meu poema libertador
é cantado por todos, até pelo rio.

Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar e manejar arcos
Muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas a amar
seus ventres crescem e nascem novos seres.

O opressor convoca novas forças
vem de novo ao meu acampamento...
Nova luta.
As palmeiras ficam cheias de flechas,
os rios cheios de sangue,
matam meus irmãos, matam minhas amadas,
devastam os meus campos,
roubam as nossas reservas;
tudo isto para salvar a civilização e a fé...

Nosso sono é tranqüilo
mas o opressor não dorme,
seu sadismo se multiplica,
o escravagismo é o seu sonho
os inconscientes entram para seu exército...

Nossas plantações estão floridas,
Nossas crianças brincam à luz da lua,
nossos homens batem tambores,
canções pacíficas,
e as mulheres dançam essa música...

O opressor se dirige aos nossos campos,
seus soldados cantam marchas de sangue.
O opressor prepara outra investida,
confabula com ricos e senhores,
e marcha mais forte,
para o meu acampamento!
Mas eu os faço correr...

Ainda sou poeta
meu poema levanta os meus irmãos.
Minhas amadas se preparam para a luta,
os tambores não são mais pacíficos,
até as palmeiras têm amor à liberdade...

Os civilizados têm armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é para os meus irmãos mortos.
Minhas amadas cantam comigo,
enquanto os homens vigiam a terra.

O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta com outros inconscientes,
com armas e dinheiro,
mas eu os faço correr...
Meu poema é simples,
como a própria vida.
Nascem flores nas covas de meus mortos
e as mulheres se enfeitam com elas
e fazem perfume com sua essência...

Meus canaviais ficam bonitos,
meus irmãos fazem mel,
minhas amadas fazem doce,
e as crianças lambuzam os seus rostos
e seus vestidos feitos de tecidos de algodão
tirados dos algodoais que nós plantamos.

Não queremos o ouro porque temos a vida!
E o tempo passa, sem número e calendário...
O opressor quer o corpo liberto,
mente ao mundo
e parte para prender-me novamente...

- É preciso salvar a civilização,
Diz o sádico opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas selvas
a grandeza da civilização
a Liberdade!
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....

- É preciso salvar a fé,
Diz o tratante opressor...
Eu ainda sou poeta e canto nas matas
a grandeza da fé a Liberdade...
Minhas amadas cantam comigo,
meus irmãos batem com as mãos,
acompanhando o ritmo da minha voz....

Saravá! Saravá!
repete-se o canto do livramento,
já ninguém segura os meus braços...
Agora sou poeta,
meus irmãos vêm comigo,
eu trabalho, eu planto, eu construo
meus irmãos vêm ter comigo...

Minhas amadas me cercam,
sinto o cheiro do seu corpo,
e cantos místicos sublimizam meu espírito!
Minhas amadas dançam,
despertando o desejo em meus irmãos,
somos todos libertos, podemos amar!
Entre as palmeiras nascem
os frutos do amor dos meus irmãos,
nos alimentamos do fruto da terra,
nenhum homem explora outro homem...

E agora ouvimos um grito de guerra,
ao longe divisamos as tochas acesas,
é a civilização sanguinária que se aproxima.
Mas não mataram meu poema.
Mais forte que todas as forças é a Liberdade...

O opressor não pôde fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema é cantado através dos séculos,
minha musa esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido...

Solano Trindade, CANTARES AO MEU POVO, Editora Brasiliense, 1981. Acervo Oubí Inaê Kibuko

Aimé Césaire

"(...) Os que não inventaram nem a pólvora nem a bússola
os que jamais domesticaram o vapor ou a eletricidade
os que não exploraram os mares nem o céu
mas eles conhecem em seus mínimos recantos o país do sofrimento
os que das viagens não conheceram senão os desarraigamentos
os que foram domados pela genuflexão
os que foram domesticados e cristianizados
os que foram inoculados com abastardamento (...)

mas eles se abandonam, presos, à essência de todas as coisas
ignorantes das superfícies mas presos ao movimento de todas as coisas
despreocupados em dominar, mas jogando o jogo do mundo

Verdadeiramente os filhos primogênitos do mundo
porosos a todas as respirações do mundo ar
fraternal de toda respiração do mundo leito
sem dreno de todas as águas do mundo
centelha do fogo sagrado do mundo
carne da carne do mundo
palpitante do próprio movimento do mundo

(...) Minha Negritude não é uma pedra,
E sua surdez lançada contra o clamor do dia
Minha Negritude não é uma catarata de água morta
sobre o olho morto da terra
Minha Negritude também não é uma torre ou uma catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu
Minha negritude perfura a aflição de seu sossego correto.(...)


(Aimé Césaire. Caderno de um regresso ao país natal, 1988)


Original em francês (última estrofe):

Ma Négritude n’est pás une bierre, as surdite rueé contre la/ clameur du jour/ Ma Négritude n’est pás une taie / d’eau morte sur l’oeil mort de/ La terre/ Ma Négritude n’est ni une tour ni une cathédrale/ Elle plonge dans la chair rouge du sol/ Elle plonge dans la chair ardent du ciel/ Elle troue l’accablement opaque de sa droite patience. In: DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. Campinas, Pontes, 1988, p. 131-132.